Resumo
O presente ensaio analisa o processo de descimento das populações Amanajó e Gamela na capitania do Maranhão, entre os anos de 1763 e 1765. Sob uma historiografia que busca enfatizar a atuação dos indígenas na aplicação do Diretório na América portuguesa, o texto a seguir vem a propor um olhar acerca das formas que os indígenas na capitania do Maranhão enxergavam a realidade colonial, muito além de uma visão de coitadismo, de passividade ou de resignação frente ao sistema que se impunha. A partir de fontes administrativas coloniais, escritas por não indígenas, pode-se enxergar inúmeros indícios de que as populações indígenas foram extremamente fundamentais para o processo de colonização, na medida em que era necessário conquistar a confiança dos habitantes locais, por vezes, modificando o curso das pretensões do império português para a América. Desde o domínio com a Língua Geral a fim de convencê-los a se mudar para as povoações estabelecidas pelos portugueses até a logística de manutenção desses povos nesses espaços, tal experiência demonstrou diversos interesses em jogo, o que permite dimensionar o seu caráter complexo e dinâmico e, dessa forma, coloca os indígenas num lugar de protagonismo não apenas do processo colonial como de sua própria história.
Em 1755, D. José I implementou a Lei de Liberdade dos Índios, que não apenas instituía a condição de livre para as populações indígenas, como também seriam retiradas do controle das ordens religiosas nos aldeamentos, que até então detinham o monopólio da mão de obra indígena.1 A condição de livre, ao invés de liberto, por sua vez, deu margens para que o império português não abdicasse da tutela com relação aos indígenas, sendo instituído, em 1757, o Diretório dos Índios, que previa não apenas incorporar as populações indígenas à sociedade colonial portuguesa, como também igualá-las aos brancos.2
Pensado inicialmente para as realidades fronteiriças não apenas do Estado do Grão-Pará e Maranhão, área correspondente aos atuais estados do Pará, do Maranhão, do Amazonas e do Piauí,3 como também da região de Rio Grande de São Pedro, correspondente ao atual estado do Rio Grande do Sul, o Diretório dos Índios foi o responsável em transformar antigas estruturas dos aldeamentos missionários em povoações civis, elevadas à categoria de Vilas ou Lugares. No caso do Estado do Grão-Pará e Maranhão, para ocupar esses núcleos, foram necessárias diversas expedições de descimento aos interiores, com o fim de arregimentar novos moradores para engrossar o contingente populacional das Vilas e Lugares de Índios.
Previsto pelo parágrafo 6 do Diretório, as expedições para recrutar trabalhadores, não mais deveria ser empregado por meio de guerras justas e das tropas de resgates, a não ser pelo convencimento e pela persuasão de que a aliança com os portugueses poderia ser um excelente negócio, bem como aceitar o modo de vida deles.4 Neste sentido, muitos indígenas aceitaram habitar os núcleos estabelecidos pelos portugueses, sob o argumento de que iriam obter vantagens e benefícios. Para o império português, isso era de fundamental importância, pois obter a confiança dos povos indígenas significava a manutenção de sua possessão na América, já que, constantemente, estrangeiros assediavam o território, a exemplo dos holandeses e espanhóis (Farage, 1991; Coelho, 2016).
Contudo, deve-se considerar não apenas essa vertente utilitarista com relação à ocupação dos núcleos, mas também a leitura que os próprios indígenas realizavam acerca desses deslocamentos de suas terras de origem para as Vilas e os Lugares fundados pelo Diretório pombalino. Assim, destacam-se dois casos referentes aos povos Amanajó e Gamela, entre os anos de 1763 e 1765, na capitania do Maranhão, nos quais é possível notar diversos mecanismos de negociação do poder colonial com as populações indígenas, estas, por sua vez, encontrando nesses momentos uma forma de fazer valer seus interesses (Dornelles, 2021). Estes momentos foram identificados em documentação do Arquivo Público do Estado do Pará (APEP) e do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU).
Em setembro de 1763, na região de Pastos Bons, freguesia de São Bento das Balsas, localizada no rio Itapecuru, sul da capitania do Maranhão, Joaquim de Melo e Póvoas, governador da capitania, informou a Manuel Bernardo de Melo e Castro, governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará e Maranhão, que houve uma ocupação por parte de indígenas da nação Amanajó à Fazenda das Mangabeiras. Dessa forma, o governador ainda relata que haviam fechado toda e qualquer forma de comunicação, deixando os moradores em estado de sítio, além de matarem os gados e confiscado as fontes e lavouras.
Diante da situação apresentada, segundo a documentação, os moradores se viram obrigados a juntarem forças para “sacudir aqueles bárbaros” (APEP, Códice 120, Documento 77), forma a qual a fonte se refere aos indígenas do período colonial, reunindo 97 pessoas, bem como pediram auxílio ao Reverendo Padre José Antônio de Freitas, capelão de Oeiras, capital da capitania do Piauí, assim como do próprio governador, João Pereira Caldas. Na ocasião, encontrava-se em missão na freguesia acima citada.
A fazenda dos Mangabeiras, ao que parece, não era de fácil acesso, pois, apesar de pertencer a uma freguesia significativamente povoada, para alcançar a localidade, a documentação sugere que a tropa formada pelos moradores, assim como pelo capitão-mor de São Bento das Balsas, levou aproximadamente cinco dias. Ao mesmo tempo, indica que a aldeia dos Amanajó localizava-se próximo à fazenda de gado, ao ponto de ser relatado que “uma temerosa aldeia de gentios” a pôs em estado de sítio. “Gentios”, “bárbaros”, “selvagens”, para citar alguns exemplos mais recorrentes nas fontes coloniais, era a forma como os portugueses buscavam desqualificar a população indígena, utilizando disso como justificativa para prosseguir o processo de colonização e a consequente expropriação das terras dos povos indígenas (Coelho, 2002).
O fato de o padre José Antônio de Freitas, mais do que ser conhecedor, falar a Língua Geral, tornou-se mais uma razão para pedir socorro a ele, pois os moradores representavam os indígenas que ocupavam a fazenda da seguinte forma: “era gentio desconhecido tanto nas armas, como nos sinais, e língua, pois em uma casa aonde se tinha visto se lhe ouviram algumas palavras da Língua Geral” (APEP, Códice 120, Documento 77). Por sua vez, o religioso viu nesta situação uma oportunidade não apenas para convencer os Amanajó a desocuparem a fazenda, como também a se converterem para a fé cristã.
Ao chegar às proximidades do local onde os Amanajó estavam assentados, o padre conhecedor da Língua Geral, em companhia de “um rapaz dos dois” que haviam sido capturados pelos moradores da Freguesia de São Bento das Balsas, conseguiu adentrar a localidade. A documentação narra que após chegar em “um alto de um mato”, José Antônio de Freitas “se meteu entre eles [os Amanajó]” e, após um certo tempo, os indígenas soltaram as armas e “vieram para fora”, tudo isso atribuído justamente à habilidade que o religioso possuía com a Língua Geral (APEP, Códice 120, Documento 77).
Dominar uma forma de comunicação com os indígenas, neste contexto, deve ser visto como mais do que uma apropriação dos mecanismos de negociação com as populações locais, de maneira a satisfazer os interesses da Coroa. É também uma forma de os próprios indígenas ditarem maneiras de obter vantagens e benefícios ao se aliar com os portugueses, pois, apesar de isso se apresentar dentro de uma relação assimétrica de poder, não se pode perder de vista a dimensão do protagonismo das populações indígenas na condução do próprio processo de colonização na América portuguesa.
A documentação informa que o padre, após esse ocorrido, passou a ser admirado pelos indígenas, a ponto de segui-lo para uma determinada localidade, apenas identificada como “no mato, aonde estão arranchados” (APEP, Códice 120, Documento 77). Vale lembrar que o religioso foi à Freguesia de São Bento das Balsas em missão, e que retornaria em breve para Oeiras, junto de Pereira Caldas. No entanto, o eclesiástico adiou seu retorno ao Piauí, pois após o estabelecimento dos Amanajó em uma determinada localidade dos sertões sul-maranhenses, os indígenas contestavam que o padre de lá se retirasse e, dessa forma, as autoridades, sob a tentativa de estabelecer uma relação de confiança com os Amanajó, não ousaram contrariar as suas demandas.
O caso do descimento dos Amanajó permite demonstrar, uma vez mais que, apesar das relações desproporcionais de poder e do gradativo e violento processo de expropriação das terras indígenas, esses sujeitos buscaram atribuir inúmeros sentidos e significados aos instrumentos coloniais. Assim, os Amanajó construíram, nesse episódio, uma maneira de conseguir valer seus interesses, deles dependendo não apenas a continuidade do cotidiano dos moradores da Freguesia de Pastos Bons, mas também, de maneira geral, o prosseguimento do processo de colonização portuguesa no Maranhão.
Outro caso bastante emblemático que permite refletir acerca das populações indígenas como atores da colonização portuguesa seria a convocação dos indígenas Gamela para o Lugar de Lapela, o que faz com que nosso foco se desloque um pouco mais para o oeste da capitania do Maranhão. Realizada em 1764, pelo principal dos Gamela, o descimento desta nação envolveu uma série de negociações por parte do governo, este utilizando-se até dos recursos da Fazenda Real para conseguir produtos a fim de persuadir os indígenas de que aldear-se era sinônimo de inúmeras vantagens.
Em carta de 4 de agosto de 1764, Joaquim de Melo e Póvoas informa, com detalhes, a respeito desse deslocamento dos indígenas Gamela. O governador do Maranhão necessitou empregar recursos da Fazenda Real para persuadir o principal Beibeto, da Aldeia Grande, a fim de induzir o restante dos indígenas a aceitar o deslocamento deles até o Lugar de Lapela, a começar pelo fato de “vesti-lo bem” (AHU, Avulsos do Maranhão, Caixa 41, Documento 4065). Muito embora este ato do governador possa remeter ao parágrafo 15 do Diretório, é preciso igualmente entender o sentido da vestimenta para os próprios indígenas que, muito além de um valor comercial, Márcio Couto Henrique (2014) chama a atenção para se enxergue também um valor simbólico nas trocas e transações entre as populações indígenas e os agentes do Estado.
Nesse contexto, vale lembrar também que a figura do principal nas povoações era algo igualmente previsto pela legislação pombalina, responsável pela administração das Vilas e Lugares, em conjunto com o Diretor. Diante disso, é possível vislumbrar o poder do qual Beibeto é investido para intermediar negociações com o governo, de modo a convencer seus pares das vantagens em mudar-se para um núcleo estabelecido pelo poder português, a tal ponto que a autoridade indígena, além do “presente” que recebeu de Melo e Póvoas, ainda sugeriu ao governador que também mandasse panos e ferramentas que, na opinião de Beibeto, seria uma forma de convencer os gamelas a descerem para Lapela.
Assim, pode-se ver esse caso sob duas perspectivas. Do lado do império português, a satisfação imediata dos interesses dos seus súditos, não apenas por estar previsto na legislação do Diretório, mas também porque da conivência dos indígenas dependia a permanência da colonização portuguesa na América. Já do lado dos Gamela, torna-se evidente que este momento de negociação demonstra a leitura que os próprios indígenas realizavam acerca da realidade colonial, buscando tirar o máximo proveito de tais situações. Dessa forma, este caso apresenta diversos mecanismos que as populações indígenas, embora sob relações desiguais de poder, buscaram de expressar seu protagonismo nas relações entre elas e o poder colonial.
Como vimos no caso dos Amanajó em São Bento das Balsas, para os Gamela se verificou semelhante forma de mantê-los na povoação de Lapela. Deslocar uma população de uma terra originária para outra completamente distinta, requeria não apenas mecanismos de convencimento para o seu deslocamento, como também de formas eficazes para manter os indígenas na povoação. Esta última se constituía na mais difícil, pois era comum nas Vilas e nos Lugares ocorrências de fugas e deserções, em grande medida, pelo descontentamento que alguns indígenas possuíam com o sistema do Diretório.
Na mesma carta acima mencionada, Joaquim de Melo e Póvoas se refere a Frei Antônio da Conceição, pároco de Lapela, como um “santinho” pelo seu procedimento com relação aos indígenas Gamela. O governador narra que o dinheiro coletado nas missas realizadas era revertido “em pano para lhes cobrir a desnudez”, o que permite a autoridade atestar o bom comportamento do religioso com relação aos indígenas e o pleno cumprimento do Diretório (AHU, Avulsos do Maranhão, Caixa 41, Documento 4065). Conforme se falou anteriormente, mais do que as demandas do império português, é necessário também enxergar o sentido que os próprios indígenas atribuíam a esse modelo de sociedade imposto pelo Reino.
As experiências de negociação com os Amanajó e com os Gamela deve ser entendido muito além do âmbito das negociações com o Estado. É preciso também entendê-las sob a dimensão do protagonismo indígena, na medida em que as demandas impostas por essas populações moldaram o curso do que estava sendo pretendido pelo império português. Mesmo que as intermediações tenham tido como base a não violência, ou seja, os mecanismos de convencimento e de persuasão, a prática demonstrou-se bem mais complexa do que o previsto, exigindo uma logística que levou em conta, em grande medida, a exigência das próprias populações indígenas.
Portanto, o caso do deslocamento dos Amanajó e dos Gamela, entre os anos de 1763 e 1765 na região oriental do Estado do Grão-Pará e Maranhão, mais do que um processo de retirada das populações de suas terras originárias, em uma política extremamente violenta de imposição do modo de vida europeu, também permite demonstrar que os indígenas enxergaram na aliança com os portugueses uma forma de reelaboração das suas próprias identidades. Ao mesmo tempo que a política pombalina intentou, de todas as formas, assimilar as populações indígenas à sociedade colonial, essas populações não apenas reagiram de diversas formas, como também buscaram dar outros sentidos e significados ao processo de colonização, a exemplo dos momentos de negociação entre elas e o poder colonial.
Referências bibliográficas
Arquivo Público do Estado do Pará. Correspondência de diversos com o Governo, Códice 120, Documento 77
Arquivo Histórico Ultramarino. Projeto Resgate, Avulsos do Maranhão, Caixa 41, Documento 4065
Bombardi, Fernanda. 2014. Pelos interstícios do olhar do colonizador: descimentos de índios no Estado do Maranhão e Grão-Pará (1680-1750). Dissertação de Mestrado em História, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.
Coelho, Elizabeth. 2002. Territórios em confronto: a dinâmica da disputa pela terra entre índios e brancos no Maranhão. São Paulo: Hucitec.
Coelho, Mauro Cezar. 2016. Do sertão para o mar – um estudo sobre a experiência portuguesa na América: o caso do Diretório dos Índios (1750-1798). São Paulo: Livraria da Física.
Dornelles, Soraia Sales. 2021. Registros de Fundações, Ereções e Posses das Vilas: um olhar sobre as vilas de índios do Maranhão. Sæculum – Revista de História, v. 26, n. 44, p. 308-327.
Farage, Nádia. 1991. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra; ANPOCS.
Henrique, Márcio Couto; Morais, Laura Trindade de. 2014. Estradas líquidas, comércios sólidos: índios e regatões na Amazônia. Rev. Hist. (São Paulo) 171: 49-82.
Meireles, Mário Martins. 1960. História do Maranhão. Rio de Janeiro: DASP, Serviço de Documentação.
Melo, Vanice Siqueira de. 2011. Cruentas guerras: índios e portugueses nos sertões do Maranhão e Piauí (primeira metade do século XVIII)”. Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal do Pará, Belém, Brasil.
Esta contribuição a Iniciativa Mellon-Upenn é um dos resultados da pesquisa realizada para o desenvolvimento do meu Mestrado: Felipe William dos Santos Silva, “Pelos campos, matas, ilhas, rios, baías e sertões: a espacialidade das povoações do Diretório dos Índios e as dinâmicas territoriais na capitania do Maranhão (1757-1774),” Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal do Pará, Belém, Brasil, 2023. ↩︎
É importante ressaltar uma questão semântica entre livre e liberto. Neste contexto, liberto significava estar fora da tutela do Estado, buscando outras formas de sobrevivência, e livre consistia em retirar a mão de obra indígena das mãos dos religiosos e transferi-los para o Estado. ↩︎
Entre os anos de 1753 e 1774, o Estado do Grão-Pará e Maranhão, segundo Mário Martins Meireles (1960, p. 162), possuía uma jurisdição que abrangia as capitanias do Grão-Pará, do Maranhão e do Piauí, além do território do rio Negro que, em 1755, viria a se transformar em uma capitania. Embora essas capitanias fossem subalternas ao capitão-general, elas possuíam um governo que lhes atribuía certo grau de autonomia, conforme Carta Régia de 6 de agosto de 1753, que extinguiu o cargo de capitão-mor de capitania e criou o de governador. ↩︎
As guerras justas e os resgates eram a forma com que o Estado, em uma política de “limpeza” do território, buscava travar conflitos armados contra os indígenas. Sobre essa questão, consultar: Vanice Siqueira de Melo (2011) e Fernanda Bombardi (2014). ↩︎