Resumo
Nesse artigo, nós apresentamos dados que retratam a situação da mulher negra no mercado de trabalho brasileiro e apresentamos informações sobre a situação das trabalhadoras domésticas no Brasil: profissão que é majoritariamente exercida por mulheres negras. Além disso, apresentamos a proposta do projeto Mulheres negras e o mercado de trabalho: um estudo sobre as trabalhadoras domésticas no Brasil desenvolvido no Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Afro Cebrap) com apoio da Universidade da Pennsylvania.
A situação das mulheres negras no mercado de trabalho brasileiro
53% das mulheres brasileiras compõem a força de trabalho no Brasil, segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua) para o ano de 2023. Mesmo que 47% do total da população feminina tenha sido considerada pela pesquisa como desocupadas ou desalentadas1, é importante ponderar que boa parte desse contingente é responsável pelo exercício do trabalho de cuidados (do lar, das crianças, dos idosos, entre outras situações) o que, necessariamente, impõe uma rotina de trabalho de, pelo menos, 17h48 por semana2. Sendo assim, pode-se considerar que a maioria das mulheres trabalham no país, seja nos setores que são considerados parte do mercado de trabalho ou não.
Ainda que os dados da Pnad Contínua apresentem algumas lacunas que dificultam a análise do mercado de trabalho das mulheres de uma forma mais ampla e que considere o trabalho de cuidados como parte das atividades laborais, os dados apresentam números que apontam para a existência de desigualdades entre as condições de trabalho de mulheres negras e não negras ativas. De acordo com a pesquisa, por exemplo, as mulheres pretas e pardas são o maior grupo dentro do conjunto de trabalhadoras informais, correspondendo a 41,9% do total das trabalhadoras que não possuem nenhum tipo de vínculo empregatício ou contrato de prestação de serviços.
Esse quadro se reflete no acesso das trabalhadoras negras aos direitos de proteção social como a previdência, pois, conforme aponta a mesma pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres negras compõem o grupo que menos faz a contribuição previdenciária (41%)3, por constituírem o contingente com menos acesso aos direitos trabalhistas e, consequentemente, aos melhores salários. Este dado chama ainda mais a atenção se considerarmos que mais da metade das mulheres ocupadas no mercado de trabalho são negras (52%). Mesmo que as mulheres pretas e pardas correspondam à maior parte da força de trabalho no país, elas ainda acessam menos os direitos trabalhistas prescritos na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e, além disso, compõem o grupo com os menores rendimentos mensais no mercado de trabalho, o que corresponde, em média, a R$ 2.562,004.
Se considerarmos os cargos que exigem ensino superior, o cenário também não é diferente. Enquanto as mulheres não negras ganham aproximadamente, R$ 4.071,00 e os homens não negros R$ 7.283,00, as mulheres negras ganham R$ 3.721,00, e os homens negros recebem R$ 5.303,00 mensais. Mesmo ultrapassando as barreiras do acesso à educação e conseguindo se inserir no mercado de trabalho em posições mais qualificadas, a condição das mulheres negras com ensino superior também é precária no Brasil.
Esses dados mostram que nas profissões que exigem mais ou menos qualificação, as trabalhadoras negras ainda representam o grupo mais precarizado no mercado de trabalho. Esse cenário é perceptível na configuração de diversos tipos de profissões e ocupações, entre elas, o trabalho doméstico, um das ocupações mais comuns para as mulheres negras no Brasil contemporâneo. Segundo o IBGE, 67,3% das trabalhadoras domésticas brasileiras são negras. E, nem ¼ desse conjunto de trabalhadoras têm acesso aos direitos trabalhistas e à proteção social5.
Essa situação de exclusão e precariedade das trabalhadoras negras assim como a sobre representação no trabalho doméstico, diz respeito a uma história complexa, marcada pelas heranças do escravismo e pelas hierarquias criadas no período após a abolição da escravidão que relegaram uma cidadania incompleta à população negra, sobretudo às mulheres negras. Questões que nos propomos a analisar no projeto Mulheres negras e o mercado de trabalho: um estudo sobre as trabalhadoras domésticas no Brasil, desenvolvido no Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Planejamento e Desenvolvimento (Cebrap) em parceria com a Universidade da Pennsylvania.
Entre a luta e a exploração: a situação do trabalho e das trabalhadoras domésticas no Brasil
As experiências e agências das trabalhadoras domésticas na sociedade brasileira têm sido objeto do pensamento de intelectuais negras, pelo menos, desde a década de 19706. De modo que as principais questões que aparecem nas críticas e análises construídas por pensadoras como Lélia González, por exemplo, abordam um questionamento da naturalização de mulheres negras na posição de empregadas domésticas e da existência de uma tripla discriminação (raça, gênero e classe) que rebaixa a condição social dessas trabalhadoras. González também afirma que a representação e o sentido que a sociedade brasileira atribuiu ao trabalho doméstico por meio da criação de figuras como a “Mãe Preta”, representação das amas de leite das camadas senhoriais brancas escravistas, funcionaram para popularizar o mito da democracia racial que pressupunha a harmonia entre os diferentes grupos étnico-raciais que conformam o Brasil e, consequentemente, a inexistência de discriminações orientadas pelos preconceitos raciais7. Assim como outras pensadoras do seu tempo, Lélia González tratou a relação que se estabeleceu entre as mulheres negras e o trabalho doméstico como um problema social e um fenômeno histórico marcado pelas hierarquias que organizam a sociedade brasileira.
Dessa maneira, ativistas negras e movimentos de mulheres negras têm explicitado um cenário totalmente diferente daquele em que o trabalho doméstico representa quando lido na chave da inexistência das desigualdades de gênero, raça e classe8. Além de uma história marcada pelo legado da escravidão e pela não realização dos direitos trabalhistas, as experiências das trabalhadoras domésticas no Brasil são marcadas por sucessivas lutas pela cidadania que foram fundamentais para ampliação da agenda do movimento negro brasileiro assim como dos movimentos de mulheres que hoje têm o trabalho de cuidados como pauta central9.
Diante desse contexto, o projeto Mulheres negras e o mercado de trabalho: um estudo sobre as trabalhadoras domésticas no Brasil tem como objetivo analisar as relações de trabalho doméstico no Brasil em uma perspectiva de longa duração10. Em diálogo com a literatura historiográfica e sociológica, com a finalidade de produzir uma interpretação sobre os processos que levaram à desvalorização desse ofício e ao rebaixamento das condições do trabalho das trabalhadoras desse ramo, nós produzimos uma base de dados a partir de documentos históricos da segunda metade do século XIX. Nesse banco, nós compilamos informações que coletamos em contratos de trabalho e livros de inscritos de trabalhadoras domésticas produzidos na cidade de São Paulo no ano de 1886. Além disso, nós levantamos também os marcos da legislação trabalhista elaborada após a abolição da escravidão assim como o histórico da atuação política das trabalhadoras domésticas ao longo do século XX.
Por meio da base de dados, disponibilizamos informações como raça, cor, condição social, salário, data da contratação, motivo das demissões e outros dados que nos ajudam a compreender as dinâmicas desse ofício em um período em que a escravidão ainda vigorava no Brasil, mas a maior parte da população negra já era livre ou liberta e, nessas posições, faziam parte do mercado de trabalho livre11. A disponibilização desse material representa um passo importante para a ampliação do número de pesquisas, estudos e análises sobre a situação da população negra no Brasil, pois ainda é custoso o acesso aos documentos históricos produzidos na segunda metade do século XIX que nos permitem identificar a cor dos indivíduos e cruzar esse dado com informações sobre profissões e ocupações12.
A derrocada do escravismo e, consequentemente, a mudança das relações de trabalho no Brasil reposicionaram as hierarquias sociais e, assim, foram construídas novas noções de raça e gênero. Esse processo também desencadeou mudanças nos entendimentos acerca do papel social das mulheres e, como resultado, as mulheres negras passaram a ser vistas como indivíduos que estavam fora da norma e daquilo que podia ser socialmente respeitável, devido aos preconceitos com respeito a suas práticas culturais e características físicas. Esse cenário se intensificou ainda mais com a abolição da escravidão e a proclamação da República, peróodo em que assistimos à redução das oportunidades de trabalho para as mulheres negras, o que colaborou para sobrerrepresentação dessa população no mercado de trabalho doméstico.
Entre 1888 e 1943, os governos brasileiros tiveram como principal objetivo reorganizar as relações de trabalho que não podiam ter mais a escravidão como parâmetro. Foi esse contexto que produziu a legislação trabalhista brasileira promulgada no ano de 1943 e, também, retirou das empregadas domésticas o status de trabalhadoras, pois as atividades relacionadas ao cuidado não foram valoradas como as ocupações que estavam diretamente relacionadas ao trabalho produtivo. Dessa maneira, a criação das leis trabalhistas representaram um grande marco no rebaixamento da cidadania das trabalhadoras domésticas. No entanto, esse acontecimento também inaugurou um período de lutas e fortalecimento da organização política dessas mulheres que conquistaram os direitos que já faziam parte da realidade dos demais trabalhadores 70 anos depois da criação da CLT.
À vista disso, acreditamos que o trabalho doméstico é um universo privilegiado para considerarmos as reflexões sobre as desigualdades de gênero e raça no Brasil. E, por esses motivos, somamos esforços para visibilizar e ampliar os debates que têm sido realizados sobre o assunto.
Referências bibliográficas:
BAIRROS, Luiza. Nossos feminismos revisitados. Revista Estudos Feministas, v. 3, n. 2, p. 458-463, 1995.
CHALHOUB, Sidney; TEIXEIRA, Fernando. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, vol. 14, n°26, 2009. p. 11-50.
GONZÁLEZ, Lélia. Por um feminismo afrolatinoamericano: ensaios, intervenções e diálogos. São Paulo: Zahar, 2020.
NASCIMENTO, Álvaro Pereira. Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuições à História Social do Trabalho no Brasil. Estudos Históricos, vol. 29, n°59, p. 607-626, 2016.
NEGRO, Antonio Luigi; GOMES, Flávio. Além de senzalas e fábricas: uma história social do trabalho. Tempo Social, v. 18, p. 217-240, 2006.
SILVA SANTOS, Taina. Histórias de mulheres negras no mercado de trabalho: caminhos trilhados e trajetos que ainda podem ser percorridos. In: SILVA, Lúcia Helena Oliveira; RODRIGUES, Jaime; SOUZA, Airton Felix Silva. (Orgs.). Escravidão e liberdade: estudos sobre gênero & corpo, memória & trabalho. São Paulo: FFLCH, 2023, v. 30, p. 217-238.
________. Em defesa da imagem, da autoestima e da dignidade de mulheres e meninas negras: mercado de trabalho em pauta no acervo de Geledés. Cadernos Afro Memória, v. 2, p. 31-37, 2023.
Mulheres que gostariam de trabalhar mas que desistiram de procurar trabalho, diante da situação de desemprego e outros fatores. ↩︎
DEPARTAMENTO SINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS. Mulheres: inserção no mercado de trabalho (boletim). São Paulo: DIEESE, 2024. ↩︎
Idem, ibidem. ↩︎
Idem, ibidem. ↩︎
DEPARTAMENTO SINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS. Trabalho doméstico (boletim). São Paulo: DIEESE, 2024. ↩︎
SILVA SANTOS, Taina. Histórias de mulheres negras no mercado de trabalho: caminhos trilhados e trajetos que ainda podem ser percorridos. In: SILVA, Lúcia Helena Oliveira; RODRIGUES, Jaime; SOUZA, Airton Felix Silva. (Orgs.). Escravidão e liberdade: estudos sobre gênero & corpo, memória & trabalho. São Paulo: FFLCH, 2023, v. 30, p. 217-238. ↩︎
GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma análise política e econômica. In: GONZÁLEZ, Lélia. Por um feminismo afrolatinoamericano: ensaios, intervenções e diálogos. São Paulo: Zahar, 2020. p. 49-64. ↩︎
SILVA SANTOS, Taina. Em defesa da imagem, da autoestima e da dignidade de mulheres e meninas negras: mercado de trabalho em pauta no acervo de Geledés. Cadernos Afro Memória, v. 2, p. 31-37, 2023. ↩︎
BAIRROS, Luiza. Nossos feminismos revisitados. Revista Estudos Feministas, v. 3, n. 2, p. 458-463, 1995. ↩︎
Conceito desenvolvido pelo historiador Fernand Braudel. Para saber mais, ver: BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais: a longa duração. Revista de História, São Paulo, v. 30, n. 62, p. 261–294, 1965. Acesso em: 16 jun. 2024. ↩︎
NASCIMENTO, Álvaro Pereira. Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuições à História Social do Trabalho no Brasil. Estudos Históricos, vol. 29, n°59, p. 607-626, 2016. Ver também: NEGRO, Antonio Luigi; GOMES, Flávio. Além de senzalas e fábricas: uma história social do trabalho. Tempo Social, v. 18, p. 217-240, 2006. E: CHALHOUB, Sidney; TEIXEIRA, Fernando. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, vol. 14, n°26, 2009. p. 11-50. ↩︎
SILVA SANTOS, Taina. Histórias de mulheres negras no mercado de trabalho: caminhos trilhados e trajetos que ainda podem ser percorridos. p. 219. ↩︎